Com passos lentos eu me
aproximava da minha presa. Ele estava de costas e distraído com o trabalho.
Meus
pés pequenos nem tocavam o chão. Hoje mostraria do que era capaz. Nada de
vacilar. Repetia sem parar o pensamento “Sou o máximo!” “Sou o máximo!”.
Dei
a volta na mesa, que por sinal estava abarrotada de ferraduras. Olhei à direita
e vi aquele pangaré que meu pai chama de cavalo. Ele era branco com uma crina
longa e sedosa. Bobby deu uma espiada em mim e bufou.
Lancei
lhe um olhar zangado. “Só falta você me denunciar, seu pangaré metido”,
pensei. Por sorte as bufadas de Bobby
não conseguiram alertar minha presa, que continuava distraído.
Continuei
caminhando e parei a apenas alguns passos. Estiquei meus braços e preparei
minhas mãos para o ataque. Estava elétrica. Finalmente mostraria quem é o
máximo e esse alguém era eu, claro!
O
diabinho dentro de mim estava enlouquecido. Comecei a contar mentalmente. Três,
dois, um e...
– Peguei você, danadinha! – Tristan se virou
com tudo e me pegou no colo.
–
Ah, não! – Disse decepcionada. Tristan me abraçava e me dava beijos no rosto.
–
Sai! Você está suado. – Disse ao empurrá-lo. – Como sabia que estava atrás de
você?
Tristan sorriu e me colocou no chão.
–
Tenho olhos na nuca.
–
Você vai ver... Deixa eu crescer que vou te dar uma lição.
–
Mas não se esqueça de que quando crescer, eu também vou. – Tristan deu mais um
sorriso. – E até lá, conforme-se com seus sete anos, pequena dama.
–
Não se esqueça de que tenho quase oito. – Retruquei com a voz petulante. – E
você não vai mais crescer, já está com dezessete anos. Virou um velho ranzinza.
–
Ainda bem que a pequena dama me lembrou. – Tristan sorriu, esticou o braço e
bagunçou meus cabelos. – Agora preciso voltar ao trabalho.
–
Posso ficar? – Perguntei esperançosa. Desde que botei fogo no estabulo, fui
proibida de ajudar Tristan com os cavalos.
Tristan
suspirou, olhou bem para mim. Para persuadi-lo deu meu melhor sorriso de menina
educada.
–
Pode ficar. – Dei um pulo e gritei, mas ele chamou minha atenção. – Você vai
ficar, desde que se sente ao lado do Bobby.
Olhei
para o pangaré albino. Ao seu lado havia um banquinho de madeira.
–
Está brincando, certo? – Olhei feio para Tristan.
–
Não. – Ele cruzou os braços. – Não vou arriscar de novo. Seu pai foi direto...
Nada de deixar Srta. Bettina Ward no estabulo sem supervisão.
Fechei
a cara. Ele sabia muito bem que odeio quando me chamam pelo meu nome completo.
– Então, o que vai ser? Banquinho ou casa? –
Tristan me observava com um olhar petulante.
–
Banquinho. – Respondi num sussurro.
–
O quê? – Ele colocou a mão atrás da orelha, para fingir que não escutou.
–
Banquinho. – Repeti.
–
Sábia decisão, Srta. Bettina Ward.
Fechei
a cara e lentamente caminhei em direção ao banquinho.
Ficar
ao lado daquele pangaré albino e fedido não me agradava.
Tristan
continuou trabalhando. De vez em quando ele me lançava um sorriso ou uma
piscadela. Eu o adorava. Ele era como meu irmão mais velho, embora não fosse.
Tristan
morava em nossa mansão desde que nasceu. Sua mãe morreu logo após seu
nascimento. Ela pareceu numa noite chuvosa procurando abrigo. Meu pai com pena,
a ajudou. Mas infelizmente no dia seguinte ela partia e deixava um bebê lindo e
gordinho. Bem, é isso que minha mãe sempre conta.
Tristan
não era um empregado ou um livre nas Terras de Eliyah. Para nós ele era da
família. O irmão mais velho que importuno. E devo salientar que tenho um irmão
muito lindo. Ao menos ele é mais bonito do que os velhos que trabalham na
mansão. Talvez seja o sorriso bobo, ou os cabelos escuros, ou a altura, ou os
olhos azuis como o céu. Seja o que for a mulherada vive comendo-o com os olhos.
É como diz o ditado “Em terra de cego quem tem um olho é rei”.
E
falando em rei. Os sinos da capela começaram a tocar. E isso significava uma só
coisa: Alguém da mansão Rossdale estava a caminho.
Sr.
Charles Rossdale era o governante da região e basta saber que ninguém simpatiza
com ele. Afinal, sua eleição foi suspeita. Até agora não há uma explicação para
sua vitória arrasadora de sessenta e sete porcento dos votos contra os trinta
porcento da Sra. Abigail Radcliff.
–
Tristan! Tristan! – Minha mãe entrou no estabulo com tudo.
–
Minha senhora. – Tristan fez uma reverência.
–
Não há tempo para isso. – Minha mãe segurou seus ombros e o ergueu. – Precisa
se esconder.
–
Por quê? – Tristan tinha um olhar preocupado.
–
Sr. Rossdale está no portão com um mandato do juiz. Ele vai vasculhar a
propriedade.
–
Mas minha senhora, ele não pode, seu marido não está em casa. É contra a lei vasculhar
a propriedade quando só há as damas.
–
Tem razão. – Minha mãe soltou um suspiro de alivio.
–
Mas mãe se ele tem um mandato do juiz, ele pode vasculhar a casa. – E foi só
então que minha mãe notou minha presença. – Mande Tristan ficar no meu quarto.
Minha
mãe franziu a testa.
–
Seu quarto?
–
Sim. Meu quarto, embaixo da cama, que por acaso tem um alçapão.
Nossa
casa era cheia de alçapões e passagens secretas. Vestígios de uma época em que
pessoas como nós eram perseguidos por aqueles que não nos entendiam.
Minha
mãe deu um sorriso de satisfação.
–
Brilhante ideia, pequena dama. – Tristan sorriu.
–
Bettina, leve Tristan até seu quarto, fiquem escondidos e haja o que houver,
não abram a porta. Andem, rápido!
Levantei-me
num salto e arrastei Tristan. Corríamos o mais rápido possível.
Entramos
na mansão pela ala dos empregados, na cozinha para ser mais exata. A Sra. Cast
estava cortando peças de porco e jogando numa vasilha de barro. Aposto que
aquele era seu tempero secreto. O qual ela não revelava nem sob tortura. O
cheiro era convidativo. Se não estivéssemos com tanta pressa, eu ficaria e
beliscava algo.
Saímos da cozinha e seguimos por
um longo corredor. Viramos à direita, depois à esquerda e depois mais um
corredor que terminava na escadaria de
mármore.
Tristan
me pegou no colo e subiu os degraus de dois em dois. Meu quarto ficava à
esquerda.
–
Me põe no chão. – Tristan obedeceu. Abri a porta com tudo – Vem.
Fechei
a porta.
–
Empurre a cama. – Tristan a empurrou e logo em seguida puxou a alça do alçapão.
–
Droga!
–
O que foi? – Perguntei preocupada.
–
Não há espaço para os dois. – Olhei o alçapão. Ele era muito estreito. – Onde
vai se esconder?
–
Vou fingir que estou dormindo. Anda, rápido! – Disse agitada.
Tristan
não gostou muito da ideia, mas obedeceu.
Assim
que ele entrou em seu esconderijo, fechei a porta e coloquei a cama no lugar. O
que não foi fácil. Era uma cama feita de madeira maciça e meu tamanho e força
não colaboravam.
Dei
uma última olhada se tudo estava no lugar, mas antes de deitar na cama,
procurei mentalmente por minha mãe. Ela estava na sala e aflita.
“Mãe?
Mãe” – Ela parou seus pensamentos e se concentrou na minha voz.
“O
que foi, querida?”.
“O
alçapão não era grande o bastante e apenas Tristan se escondeu. Eu vou ficar na
cama e fingir que estou dormindo. Sr. Rossdale não ousará entrar no quarto”.
“Ah,
querida” – Minha mãe suspirou. – “Não tenho tanta certeza sobre isso”.
Minha
mãe deu mais um suspiro e cortou nossa conversa mental.
Às
vezes eu e meu pai ficávamos horas contando piadas um para o outro através dos
nossos pensamentos. E é claro, mamãe sempre desaprovava. Ela dizia que nossa
magia deveria ser usada em ocasiões de extrema necessidade. Como agora.
Deitei
na cama e me cobri com a colcha. Tudo estava silencioso, mas eu estava atenta
para qualquer movimento do lado de fora. Tomara que meu plano dê certo.
De
tempos em tempos precisamos esconder alguns empregados, principalmente os mais
jovens. Algumas famílias mais abastadas gostam de fazer visitas surpresas e
levar algum empregado de outra família.
Minha
família já foi uma das mais ricas e influentes das Terras de Eliyah. Mas após o
irmão mais velho de meu pai jogar o nome da família na lama, ao se casar com a
filha mais nova dos McCauley, os títulos dos Ward foram caçados pelos Rossdale,
e agora nossa família estava na rabeira da cadeia alimentar.
Nas
Terras de Eliyah (Hoje em dia) existem onze famílias influentes. No topo estão
os Rossdale e Weiss. No meio estão os Shear, Harvey, Hilliard, Vince, Radcliff,
Delac, Wood e Rea. E no fundo os Ward.
Isso
parece uma coisa à toa, mas o fundo já foi ocupado pelos McCauley, que eram
considerados como a escória entre nós. Eles não eram bruxos ou criaturas
mágicas. Eles eram descendentes de algo que já foi idolatrado pelos homens
livres, e que agora não passava de lenda.
Nas
Terras de Eliyah haviam várias leis e uma delas dizia que nenhum ser mágico
deveria misturar seu sangue com o de outro, que não fosse de sua própria
espécie. Um crime tão grave, que era punido com a morte. Mas meu tio Andrew não
quis ouvir os alertas e se casou com uma McCauley. Quando as outras famílias
descobriram, tentaram separá-los, mas já era tarde demais. O sangue dos Ward e
McCauley já havia se misturado.
Desesperado, meu tio fugiu para a
Terra dos Livres com a esposa e o filho não nascido. Por causa disso, os
McCauley foram aniquilados e minha família desonrada. Só não tivemos o mesmo
destino, porque meu avô jurou de pé junto que não sabia da traição do filho. O que era
verdade. Agora já não posso dizer o mesmo de meu pai. Ele não só sabia,
como ajudou o irmão a escapar. Então se não tomarmos cuidado podemos ser
eliminados.
Ouvi
a voz de minha mãe do lado de fora.
–
Por favor, Sr. Rossdale, O que procura? – Ela parecia mais aflita do que antes.
–
O que há atrás desta porta? – Ouvi uma voz grossa do lado de fora.
–
É o quarto da minha filha. – Ouvi a maçaneta se mover.
“Que
audácia”, pensei.
–
Não pode entrar! Ela está dormindo! – A voz de minha mãe se elevou.
Não
passou muitos segundos e ouvi minha mãe gritar. Levantei da cama num salto e me
aproximei da porta.
–
Quem pensa que é para falar comigo dessa maneira? – Não gostei do timbre
daquela voz. Ela estava carregada de ódio. – Sou seu governante e me deve
respeito. Cuidado, Sra. Ward, posso rebaixar ainda mais sua família.
Tinha
que controlar o impulso para sair do quarto, e ao que tudo indica, Tristan
também. Ele saíra de seu esconderijo e agora estava parado ao meu lado, sério e
com um olhar carregado de raiva. Ele fechava suas mãos com tanta força, que os
músculos de seus braços tremiam.
–
O que está acontecendo aqui? – Fechei meus olhos e respirei aliviada. Meu pai
tinha voltado.
–
Sr. Ward. – Agora havia cinismo na voz. – Estou apenas procurando algo. Acho
que sabe o quê?
–
Não sei do que está falando. – A voz de meu pai tremeu.
– Sabe sim. Até quando acha que
vai esconder isso de mim?
–
O que procura não existe. É apenas uma lenda. Que tipo de governante aterroriza
seu povo correndo atrás de um conto de fadas?
–
Fadas? Não seria uma bruxa muito maluca? – Rossdale riu.
Após
a pergunta houve um silêncio mortal. Fiquei frustrada e encostei a orelha na
porta, na tentativa de ouvir algo. Até recorri aos meus dons, mas ao que tudo
indica meus pais não me queria bisbilhotando a conversa. O único som que havia
era a respiração pesada de Tristan ao meu lado.
De
repente ouvi passos no corredor.
–
Senhor, já vasculhamos tudo, não há nada.
A
maçaneta se moveu mais uma vez. Eu e Tristan demos alguns passos para trás.
–
Não pensem que isso acabou. – A voz de Rossdale parecia frustrada. – Mais cedo
ou mais tarde, vou ter o que quero. É um direito meu.
Ouvi
passos se distanciando. Corri até a janela do meu quarto. Poucos minutos depois
vejo um homem de cabelos escuros, alto e com um andar elegante. O Sr. Rossdale
podia ser um tirano, mas o homem tinha presença, isso eu não podia negar. Junto
com ele saíram seus... Soldados! Ele não veio para levar um empregado, e sim, realizar uma prisão.
–
Ele veio prender alguém. – Disse, mas não obtive resposta. Olhei para trás e vi
Tristan sentado no chão encostado na parede e com as mãos na cabeça.
Caminhei
até ele.
–
Tristan, o que houve? – Mais uma vez não tive resposta.
Estava
prestes a chacoalhá-lo, quando meu pai entrou no quarto. Ele ficou parado ao
lado da porta por alguns segundos, até suspirar e tocar Tristan no ombro.
PS: Por ser longo o capítulo foi dividido em duas partes.
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